Quarta Criativa🦋 #35 Caiu a árvore. Ninguém ouviu. Ainda vale?
Edição dedicada às experiências que nunca foram fotografadas ✨
Ainda não conhece a newsletter Quarta Criativa da crisálida? Quer saber por que essa estrutura pode desbloquear sua criatividade? Tá aqui a estrutura explicadinha e lindinha só pra tu 💖
O Ovo: onde tudo é possível
(Se inspirar ou referências da semana)
📚Livro: Trilogia da Rachel Cusk – Esboço, Trânsito e Mérito. Ao longo desses três livros, a protagonista Faye quase não fala. Ela escuta. E é nessa escuta que a narrativa se constrói — pelas vozes dos outros, por suas histórias, opiniões, julgamentos.
Esses personagens falam de filhos, divórcios, fracassos, arte, mudanças. Mas o que revelam, sem querer, é como constroem versões de si e dos outros. O julgamento que fazem do mundo é sempre uma interpretação torta e, por isso, reveladora.
Cusk mostra que toda fala é parcial, toda narrativa é construída, toda verdade é uma edição. Uma leitura que escancara que o olhar do outro não é espelho, é autorretrato. Viver à mercê desse olhar é absurdo.
Estava de óculos, com minhas roupas mais velhas e sem maquiagem nenhuma, e ele ergueu os olhos para mim da cama e me disse, mãe, como você está feia. E eu falei pois é, é assim que eu sou às vezes. Em outras uso maquiagem e roupas legais e fico bonita, mas também é assim que eu sou. Eu nem sempre agrado você, falei, mas sou tão real deste jeito quanto do outro.
🎶Música: Nem todo afeto vai ser compartilhado. Nem toda presença precisa ser dividida. Amar a si é também saber se colocar em primeiro lugar — mesmo quando isso significa se afastar.
A música Mãos Dadas de Academia da Berlinda canta exatamente isso: o reconhecimento de um limite, a firmeza de não se dobrar por compreensão, a coragem de caminhar só quando o coração pede espaço.
“Sei que você espera de mim
Aquilo que eu não posso te dar
Não vem me acompanhar
Que eu não sou novelaRádio eu não sou, meu bem
Pra você me sintonizar
Não tenho satisfação para dar”
🎨Arte: Craniologia (1973), de Ketty La Rocca. Radiografia de seu próprio crânio, exibida em caixa de luz e coberta pela palavra manuscrita “you”. A obra tensiona os limites entre dentro e fora, olhar e ser olhada, corpo e linguagem.
Ao inscrever “you”, La Rocca convoca o espectador: quem vê também é visto. A obra devolve o olhar — rompendo a fronteira entre experiência íntima e exposição pública.
A Lagarta: Pé no chão, raízes
(Se conectar)
Quando o olhar de fora não vem, o que você ainda consegue oferecer a si?
Essa é uma prática que venho repetindo a semana inteira — e foi a faísca que deu origem a essa edição da QC. É um convite pra cultivar o amor e a aceitação que nascem dentro de nós, por nós e para nós.
Procura uma posição confortável (de preferência com a coluna reta). Respira fundo. Percebe o corpo, o ar entrando e saindo, o chão que te sustenta.
Imagina um momento em que você sentiu muito amor ou imagina uma pessoa que você ama profundamente. Permite que essa sensação te envolva e cresça. E repete (se puder, em voz alta):
✨ Que eu possa me amar como sou.
✨ Que eu possa me aceitar como sou.
✨ Que eu possa viver em paz com quem eu sou.Mantém essa sensação de amor quentinho e visualiza agora alguém que você ama. E repete:
✨ Que você possa se amar como você é.
✨ Que você possa se aceitar como você é.
✨ Que você possa viver em paz com quem você é.Por fim, lembra de alguém com quem você sente dificuldade (pode até ser você). E repete de novo.
Não tem problema se esse auto amor soar fake ou ridículo pra você — o começo é geralmente assim (foi pra mim). Faz de qualquer forma. Agora, o foco não é o projeto finalizado, mas o processo. Uma hora você acredita.
Inspira amor pra dentro. Expira amor pro mundo. Um amor que não precisa de testemunha pra existir.
O Casulo: Introspecção, reflexão
(Olhar pra dentro)
E se ninguém olhar, ainda vale? Se ninguém escuta, fez barulho?
Você consegue viver a experiência de uma paisagem cinematográfica sem a vontade de fotografar e postar nas redes sociais? Só viver aquilo, sem precisar transformar o instante em conteúdo, em comprovação, em lembrança digital?
É difícil. Às vezes, parece que, sem o registro, o momento escapa. Como se a vivência só ganhasse corpo quando validada de fora — por uma curtida, um comentário, uma reação qualquer que ateste: sim, isso aconteceu. Sim, você esteve lá. Sim, foi incrível. Mas ninguém elogiou. Ninguém reagiu. E isso te deixou à deriva. Se ninguém te viu lá, será que você esteve? Se ninguém diz que foi bom, será que foi? Se ninguém valida o que você sente, será que tem motivo?
Na edição #12 —“você se sente confortável em ser a vilã da história?” — falei sobre essa necessidade por aprovação externa. Da gente querer ser percebida de um certo jeito. De parecer uma pessoa forte, competente, generosa. Hoje, o ponto é outro: o que acontece quando esse olhar não vem?
Essa semana, uma meditação me lembrou que sentir não precisa de testemunha. Que nem tudo precisa ser dito ou explicado. Que o que sentimos não precisa ser aceito por ninguém pra ser real. Parece óbvio, mas a gente teima em esquecer.
E é compreensível. Essa herança genética por pertencimento ganhou uma armadura nova na era das redes sociais — um ambiente que, aos poucos, condiciona a busca constante por microdoses de aprovação. Posta. Espera. Checa. Comemora. Repete. As redes foram desenhadas pra isso: pra capturar nossa vulnerabilidade e transformá-la em dependência. Elas se alimentam do nosso desejo por reconhecimento, atenção e validação.
Tudo isso faz sentido. Não é só você. Não é fraqueza. É estrutura. Foi intencionalmente arquitetado pra nos viciar nesse fluxo de dopamina social. E quanto mais automático esse processo se torna dentro de nós, mais difícil fica perceber que estamos vivendo no reflexo, não na experiência.
Agora o grande trabalho é desaprender. Mas isso não acontece se seguimos no piloto automático — sem nenhuma consciência do jogo por trás dos panos. Porque, no fundo, sua experiência não precisa de plateia pra ser válida, nem de aprovação externa pra te emocionar, transformar ou marcar. Você não precisa de ninguém pra te dar o direito de sentir o que sente. Não estou dizendo que compartilhar experiências é inútil — muito pelo contrário.
Existe um valor imenso em dividir a vida com os outros. Só que esse valor se perde quando o dividir vira pré-requisito pra sentir prazer, sentido ou pertencimento.
É poder curtir uma viagem sozinha e ainda assim se divertir. Assistir a um pôr-do-sol sem tirar uma foto sequer e, mesmo assim, se emocionar. Sentir medo de algo que parece pequeno e ser você quem diz: “é válido, eu posso me sentir assim.”
Talvez a verdade mais difícil de engolir aqui é que você simplesmente não pode depender de ninguém pra viver. Não dá pra colocar sua paz nas mãos de alguém que pode ou não estar disponível. E nem sempre a validação externa é justa, gentil ou amorosa. Aprender a ser sua própria referência vai além de autonomia — é alicerce emocional.
E eu sei: nada disso se resolve num texto. Não é só ler e pronto, entendi agora, cura feita. Isso é prática. É construção diária. Dá trabalho mas não exige nenhum superpoder. Você já tem tudo o que precisa. E quero te dar uma sugestão pra começar:
1️⃣: Perceber de quem (ou do quê) você depende para receber validação. Pais, amigos, colegas, chefes, rede social?
2️⃣: Identificar o que essas fontes externas te oferecem. Sensação de conexão? Importância? Reconhecimento?
3️⃣: Buscar formas de oferecer isso a si. Se ouvir com atenção? Se acolher sem julgamento? Se lembrar do próprio valor?
Essa é uma prática de auto amor e gentileza. É se reconhecer primeiro. Se enxergar antes de ser vista. Se ouvir antes de buscar escuta. Se entender antes de esperar compreensão. Ser sua primeira testemunha.
Tem coisas que podem existir só pra você, só pra dentro. E tudo bem se ninguém souber. Você não precisa que alguém curta sua foto pra achá-la bonita. Não precisa que alguém diga que você tem valor pra saber que tem. Não precisa que ninguém te autorize a sentir o que sente.
Você pode ser sua própria validação. Compartilhar, sim — mas sem precisar disso pra confirmar que viveu. A sua experiência (com ou sem testemunhas) continua sendo sua. Você pode ter uma voz linda mesmo que só o chuveiro escute.
A Metamorfose: A transformação, mudança
(Reinterpretar/Experimentar)
A música Mãos Dadas e a obra Craniologia não aparecem aqui como inspirações soltas, mas como pontos de contato profundo com o tema da semana: a ruptura entre dentro e fora, o limite entre o que se sente e o que se mostra, entre ser e ser visto.
Escolhe uma das duas e responde com o que te atravessou. Pode ser um trecho da música reescrito no teu vocabulário. Uma imagem inspirada na radiografia de La Rocca. Um texto, um som, uma colagem. O que você tem a dizer a partir disso? Que forma isso toma em você?
Remixar é experimentar o que acontece quando você toma pra si algo que já carrega potência. Talvez sua versão traga silêncio onde havia som, rosto onde havia osso, cor onde havia sombra. É escuta ativa: criar como quem responde.
A Borboleta: Voo, produção, realização
(Abrir as asas e voar)
Parte do que você sentiu na prática da Lagarta. Aquilo que apareceu quando você tentou se oferecer amor. Pode ter vindo calor, alegria, desconforto, dúvida, até vergonha. Tudo isso é material. Tudo isso tem forma.
Cria algo que expresse esse contato — torto, bonito, estranho ou fluido — com a sensação (ou a intenção) de se amar e se aceitar. Não precisa ser coerente. Nem bonito. Pode ser um desenho rabiscado, um áudio abafado no gravador, um texto que ninguém além de você vai ler.
O convite é bem simples: materializar a forma que tudo isso toma em você agora. Sem plateia. Sem explicação. Só você, se ouvindo, se vendo, se tocando.
Espero que essa edição sirva de lembrança: mesmo que ninguém tenha ouvido, você fez barulho, sim.
Bjs e até quarta que vem <3