Quarta Criativa🦋 #34 a dor é a fresta é a flecha é a faísca
Edição dedicada ao eco, ao arco, à ponte ✨
Ainda não conhece a newsletter Quarta Criativa da crisálida? Quer saber por que essa estrutura pode desbloquear sua criatividade? Tá aqui a estrutura explicadinha e lindinha só pra tu 💖
O Ovo: onde tudo é possível
(Se inspirar ou referências da semana)
📚Livro: Em Os Despossuídos, Ursula K. Le Guin constrói dois planetas (tecnicamente um planeta e sua lua) contrastantes para falar de liberdade, coletividade, tempo e afeto — mas é na sutileza dos conflitos internos que o livro mais me tocou. A filosofia está nas entrelinhas, e as perguntas ficam vibrando muito além da última página. Não é uma leitura leve, mas é daquelas que deixam frestas abertas por dentro.
“O Princípio da Simultaneidade, capaz de tornar possível a comunicação instantânea e, com isso, revolucionar a civilização interestelar, é a grande obra de Shevek, um físico brilhante oriundo do árido e anarquista mundo de Anarres. No entanto, seu trabalho acaba sendo sufocado por colegas movidos pela inveja, o que o leva a buscar um novo horizonte no planeta irmão, Urras, onde espera encontrar mais abertura e tolerância. Lá, porém, Shevek logo descobre que está sendo manipulado como um peão em um jogo político mortal, enfrentando dilemas que vão muito além da ciência.”
(você vai encontrar trechos desse livro ali embaixo no Casulo)
🎶Música: Killing Me Softly de Roberta Flack. Sabe quando alguém coloca em palavras exatamente o que você sente — e isso te atravessa como uma flecha certeira e silenciosa? É sobre isso que Roberta Flack canta. A música fala de uma dor íntima que encontra eco na voz de um estranho, como se ele cantasse sobre ela. E, enquanto ele canta, ela vai “morrendo suavemente com sua canção”.
Essa é a potência do reconhecimento. Da dor que encontra eco no outro. Uma experiência que parece tão individual — e que, no entanto, revela ser tão comum. Tão abrangentemente humana.
Essa música é uma ode à vulnerabilidade que nos conecta. E talvez por isso toque tão fundo há tantas gerações.
🎨Arte: À beira do mar, dois corpos atravessam o entardecer. Estão juntos, mas não se tocam. Imersos, mas não afundam. O desfoque revela uma dor que chega antes do nome, antes do entendimento.
Essa imagem fala do limiar. Daquele instante em que algo dentro de nós começa a ceder, a dissolver, a pedir passagem. Quando a barreira fica tão fina que já conseguimos ver formas borradas do que existe do outro lado. Essa travessia que pode sentir solitária, mas não é isolada. Há um outro ali. Íntegro, distinto, mas presente. E alí, no silêncio de um fim, nasce um tipo raro de companhia: o reconhecer-se no outro.
Aqui, a dor não é espetáculo. É paisagem. E, no horizonte incerto, já se anuncia uma metamorfose.
Fiz essa foto sem saber ainda que ela falaria tanto de mim (e de nós). Como tantas vezes, foi o inconsciente que escolheu o momento. Eu só escutei depois:
A Lagarta: Pé no chão, raízes
(Se conectar)
Talvez o dia esteja corrido. Talvez algo esteja pesando, mesmo que você ainda não saiba nomear. E se você parasse por um instante agora — só um instante — e escutasse?
Escutasse o que seu corpo está tentando te contar. O que sua respiração está tentando organizar. O que a leveza (ou o incômodo) do momento está tentando mostrar.
Repara: tem algo que se move aí dentro, mesmo em silêncio? Algo que talvez nem queira ser resolvido, só acolhido…
Pode ser uma saudade antiga, uma irritação sem nome, um aperto no peito que vem e vai.Em vez de correr, experimenta ficar. Ficar e sentir. Talvez essa seja só uma frestinha. Mas a luz entra até pelas menores fendas.
O Casulo: Introspecção, reflexão
(Olhar pra dentro)
Outro dia, conversando com T sobre as crises que a gente anda atravessando, saiu da minha boca uma frase que se fez visita na minha cabeça desde então:
“Não vou desperdiçar meu sofrimento, né? Se é pra sofrer, que eu pelo menos aprenda alguma coisa com isso.”
A gente riu, mas aquilo ressoou tão forte lá dentro que está ecoando até agora no meu peito. Finalmente nomeei um pacto já antigo que havia feito comigo mesma, silenciosamente, sem perceber.
A gente aprende desde cedo a correr da tristeza, da raiva, da perda, como se sentir essas coisas fosse falha de caráter ou sinal de fraqueza. Como se felicidade ininterrupta fosse o único estado válido e aceitável.
“Bom dia, tudo bem?”
Tenta responder com “não, to muito triste hoje” e prepare-se pra um ar que automaticamente pesará uma tonelada e uma resposta em forma de riso desconfortável ou qualquer outra fuga da situação.
Tentamos fugir da dor, mas a dor me ensinou que não dá pra apagar só uma emoção. Silenciar uma significa silenciar todas.
E isso tudo me lembra trechos que li no livro Os Despossuídos de Ursula K. Le Guin. Pra ampliar nossa conversa, te trago alguns.
“Se você evita o sofrimento, também evita a chance da alegria. Prazer você pode até conseguir, ou prazeres, mas não se sentirá realizado. [...] A busca pelo prazer é circular, repetitiva, atemporal... Não é uma jornada e retorno, mas um ciclo fechado, uma sala trancada, uma cela. [...]
Eu sei na pele. Em um auge depressivo, precisei de medicamentos que me anestesiaram por dentro. Eles cumpriram sua função: impediram que eu despencasse de vez, me seguraram por tempo suficiente pra eu juntar forças pra sair do buraco. Mas com eles também perdi a borda de tudo. Não sentia mais o desespero… mas também não sentia alegria. Nem raiva. Nem tesão. Nem medo. Nem nada. Era tudo cinza.
Le Guin escreve também:
“O sofrimento é um mal-entendido.” (…)
“Ele existe,” disse Shevek, abrindo as mãos. “É real. Eu posso chamá-lo de mal-entendido, mas não posso fingir que ele não existe, ou que um dia vai deixar de existir. O sofrimento é a condição sobre a qual vivemos. E quando ele chega, você sabe. Você o reconhece como verdade. Claro que é certo curar doenças, prevenir a fome e a injustiça, como faz o organismo social. Mas nenhuma sociedade pode mudar a natureza da existência. Não podemos evitar o sofrimento. Esta dor ou aquela dor, sim, mas não A Dor. Uma sociedade só pode aliviar o sofrimento social, o sofrimento desnecessário. O resto permanece. A raiz, a realidade. Todos nós aqui vamos conhecer o luto; se vivermos cinquenta anos, teremos conhecido a dor por cinquenta anos. E, no fim, vamos morrer. Essa é a condição sobre a qual nascemos.
Mas então é isso? A vida é sofrimento sem chance de fuga? Devemos nos entregar aos pessimistas e desistir? É realmente só pra sofrer que viemos à essa realidade??
Mas Shevek — o protagonista de Le Guin — continua:
Eu tenho medo da vida! Às vezes eu… fico apavorado. Qualquer felicidade parece trivial. E, ainda assim, me pergunto se não é tudo um mal-entendido — essa ânsia por felicidade, esse medo da dor… E se, em vez de temê-la e fugir dela, a gente… a atravessasse, fosse além dela? Existe algo além dela. É o “eu” que sofre, e há um lugar onde o “eu”… cessa. Não sei como dizer isso. Mas eu acredito que a realidade — a verdade que reconheço no sofrimento de um jeito que não reconheço no conforto e na felicidade — é que a realidade da dor não é a dor. Se você conseguir atravessá-la. Se conseguir suportá-la até o fim.”
O sofrimento é desconfortável. Ele machuca. Ele derruba. Mas ele não é erro de percurso. Primeiro porque ele é inevitável, segundo porque ele também revela. Se tivermos coragem de olhar de perto os rasgos que ele arranca da gente poderemos ver através deles um universo inexplorado. Sem as fendas sangrentas da dor, nunca poderíamos alcançar a amplitude que só existe do outro do muro. Do lado de fora do ciclo fechado, da sala trancada, da cela.
Se você prestar atenção, a dor é o arco que puxa a flecha pra trás antes de lançá-la adiante — sem esse recuo, não há impulso. Nem direção.
Mas a dor não age só por dentro. Ela derruba muros internos, sim — mas também pode construir pontes do lado de fora. Tendemos a acreditar que a nossa dor é única, e isso nos isola. Mas, no fundo, é ela o que temos de mais profunda e intensamente em comum. É ali, na partilha silenciosa do que machuca, que nos reconhecemos uns nos outros. É chorar em frente a um quadro de Frida: alguém que não existe há tantos anos mas te prova ali que sentiu a mesma dor que você sente agora.
E há ainda outra camada, mais funda e delicada: a vulnerabilidade. Não como fraqueza, mas como essa fresta por onde podemos encontrar o outro em um plano mais honesto. Esse reconhecimento íntimo, quase silencioso, de que não damos conta sozinhos. De que precisamos uns dos outros pra continuar.
Ursula — por meio de Shevek — também nos fala:
"É o nosso sofrimento que nos une. Não o amor. O amor não obedece à razão, e se transforma em ódio quando forçado. O vínculo que nos une está além da escolha. Somos irmãos. Somos irmãos naquilo que compartilhamos. Na dor, que cada um de nós precisa sofrer sozinho, na fome, na pobreza, na esperança, reconhecemos nossa irmandade. Sabemos disso, porque fomos obrigados a aprender. Sabemos que não há ajuda pra nós a não ser a que vem uns dos outros, que nenhuma mão vai nos salvar se nós mesmos não estendermos a nossa. E a mão que você estende está vazia, assim como a minha. Você não tem nada. Você não possui nada. Você não é dono de nada. Você é livre. Tudo o que você tem é o que você é, e o que você dá.”
Essa dor que achamos que vai nos separar — nos conecta. Nos iguala. Nos aproxima. Essa semana, não quero te dizer que vai passar. Quero te convidar a não desperdiçar tua dor. A encher o coração de coragem e atravessá-la com os olhos abertos. Pra encontrar, do outro lado, um espaço novo. Mais vivo. Mais inteiro. Mais teu.
Ursula nos entrega uma última verdade luminosa:
“Trabalhar com o tempo, e não contra ele, é o que faz com que ele não seja desperdiçado. Até a dor conta.”
E ela conta. Contou no meu corpo, na minha história, nas rachaduras que abriram espaço pra algo novo nascer.
A dor não precisa ser bonita. Mas ela pode ser fértil.
A Metamorfose: A transformação, mudança
(Experimentar)
Essa semana, o convite é pra criar a partir do eco.
Escolhe uma das referências do Ovo — a música de Roberta Flack ou a fotografia dos dois corpos no mar — e materializa a ponte que a conecta com você.
As duas falam de uma dor íntima que, de repente, se reconhece em outra voz, outro corpo, outro olhar. Aquilo que parecia só seu revela ser compartilhado. E é nesse espelho inesperado que a solidão abre uma fresta e vira partilha.
Que forma tem essa fresta? Essa ponte? Pode ser um texto, uma colagem, um vídeo, um gesto, uma dança, um som. Pode ser qualquer coisa que brote desse encontro entre o dentro e o fora. Entre você e o outro.
A Borboleta: Voo, produção, realização
(Abrir as asas e voar)
Essa semana, a proposta é criar com sua dor. Não como um exercício de superação, mas como um gesto de escuta.
Pega um papel, seu caderno, o bloco de notas do celular, o que for. E escreve uma carta pra sua dor. Deixa sair como sair.
Pode ser um desabafo, um pedido, uma pergunta, uma despedida, uma dança com o que ainda não tem nome. O importante é que seja honesto.
Se quiser ir além: depois de escrever, lê a carta em voz alta pra si. Depois você pode guardar, rasgar, queimar, enterrar. Ou transformar em poema, imagem, música.
Mas antes de qualquer coisa: escuta.
Espero que essa edição seja ponte — entre mim e você ou entre você e alguém que também precise atravessar.
Bjs e até quarta que vem <3