Quarta Criativa🦋 #21 além da muralha da nossa dor
Edição dedicada às frestas que deixam o ar (e o outro) entrar ✨
Ainda não conhece a newsletter Quarta Criativa da crisálida? Por que essa estrutura vai desbloquear sua criatividade? Tá aqui a estrutura explicadinha e lindinha só pra tu 💖
O Ovo: onde tudo é possÃvel
(Se inspirar ou referências da semana)
🎥Série: Tem séries que a gente assiste e esquece. E tem aquelas que ficam ressoando dentro da gente. Bref. 2 foi assim pra mim (trailer). Seis episódios, uns 40 minutos cada – e ainda não consegui parar de pensar.
Nem vi a primeira temporada (só descobri depois que existia), mas isso não me impediu de mergulhar na segunda. Dá pra assistir direto, sem problema. E vale a pena.
O que faz essa série especial é a forma como traduz emoções, pensamentos e processos mentais em metáforas visuais. Quando o protagonista tenta entender o irmão, por exemplo, ele literalmente caminha pelos corredores da vida dele, abrindo portas para ver cada cena sob sua perspectiva.
A série fala sobre muita coisa – autoconhecimento, enxergar o outro apesar da nossa dor, as relações que construÃmos com nós mesmos e com os outros. Mas o que mais me encantou foi como tudo isso é contado.
É como entrar na mente de alguém extremamente imaginativo. As metáforas são tão bem feitas que não só explicam – jogam a gente pra dentro da experiência, e, no fim, talvez até nos reconheçamos ali.
📚Livro: Em Esboço, de Rachel Cusk (aqui), a protagonista, Faye, viaja a Atenas para dar aulas de escrita criativa. Mas, em vez de contar sua própria história, ela escuta. O livro se constrói pelas conversas que ela tem com estranhos – relatos sobre amor, frustrações, memórias e arrependimentos.
Cada voz desenha um fragmento de mundo e, aos poucos, Faye também se revela – não pelo que diz, mas pelo que escolhe ouvir. A escrita de Cusk transforma essas interações em um mosaico sobre identidade, relações e as formas como nos construÃmos a partir do outro.
No fim, a sensação é essa: será que escutar o outro pode nos revelar partes de nós que sozinhos não enxergarÃamos?
🎨 Arte: Mudanças, à s vezes, parecem lentas - como o transformar das flores - mas se acelerássemos o tempo, verÃamos outra coisa. Como as orquÃdeas, que se transformam para se adaptarem e, ao fazerem isso, moldam o mundo ao seu redor.
A artista @sofiacrespo traduz isso lindamente: crescer não é só um processo interno, mas um movimento em resposta ao que nos cerca. Como uma dança, onde cada passo influencia o próximo. Saca a animação aqui:
A Lagarta: Pé no chão, raÃzes
(Se conectar)
Sabe quando a gente tá tão tomado pelo que sente que o mundo ao redor meio que desaparece? Quando tudo que existe é o que está pulsando dentro da gente – a raiva, a dor, a frustração – e nada mais importa?
É como estar no meio de uma tempestade: raios partindo as árvores ao redor, folhas voando por todos os lados, cortando o rosto, água ensopando a roupa enquanto a gente corre pela floresta, tropeçando, tentando encontrar um abrigo que nunca aparece.
E, em meio ao caos, é impossÃvel lembrar que acima das nuvens o céu ainda é azul.
Mas existe um jeito – um treinamento, digamos assim – de passar pelas tempestades internas de forma menos dolorosa.
Na próxima vez que seu mundo interno estiver em tempestade, feche os olhos e se imagine não mais no meio dela, mas dentro de uma casa, assistindo pela janela. Um lugar seguro. Você pode estar sentado no canto mais aconchegante da casa – eu me imagino num sofá fofinho, enrolada em cobertinhas, cercada de almofadas. A tempestade não deixou de existir, nem de ser intensa. Mas agora você não está mais no olho dela. Você está observando, protegidx.
Aprendi isso com a meditação. Não somos nossas emoções. Elas vêm e vão, como as tempestades. Mas quando estamos no meio delas, tudo parece incontrolável. A escolha que temos é essa: continuar sendo arrastados pelo vendaval ou encontrar um refúgio dentro de nós mesmos e, de lá, assisti-lo até que passe.
Porque passa. Sempre passa.
E quando a tempestade finalmente vai embora, o céu azul reaparece – mas a verdade é que ele sempre esteve lá. As nuvens nunca o apagaram, só o cobriram por um tempo. Assim são nossas emoções. Elas tomam conta, escurecem tudo, fazem parecer que nunca vai ter luz de novo. Mas por trás delas, nosso céu azul nunca deixa de existir.
O Casulo: Introspecção, reflexão
(Olhar pra dentro)
Você já doeu tanto que não conseguiu ver mais nada?
Já ficou presx na sua própria dor, sem conseguir escutar o que vinha de fora?
Quando alguém te machuca, quanto tempo te leva pra ver além dos seus sentimentos?
Eu demoro, geralmente. Quando brigo com meu parceiro, a história na minha cabeça se constrói assim: ele me machucou, ele partiu meu coração, ele é o vilão cruel dessa narrativa. E eu? A pobre vÃtima incompreendida. Fico dias dentro desse enredo, alimentando cada detalhe da minha dor. Só quando a tempestade acalma, quando as emoções pontiagudas perdem um pouco do corte, a gente conversa. Ele me conta o que aconteceu do lado dele. E então eu vejo: eita. Nem era um vilão. Ele só tava tentando também. Ele falhou, como eu falhei. Ele não queria me destruir. Ele só... não conseguiu fazer melhor.
Mas essa semana aconteceu uma coisa inédita (acho). Pela primeira vez, essa fresta apareceu antes. Ainda estava magoada. Ainda com raiva. Ainda não tÃnhamos conversado. Mas eu vi quase imediatamente (talvez minutos depois). Eu vi que ele tentou. Vi que ele falhou. Vi que ele não conseguiu. E vi isso sem o filtro do vilão terrÃvel. Vi como alguém que tenta, que erra, que não sabe tudo. Como eu.
E ver isso enquanto tudo dói dentro de mim, enquanto eu me sinto incompreendida e machucada, foi uma vitória. Porque por muito tempo eu não soube ver nada além da minha dor.
Eu percebi isso pela primeira vez no auge da minha depressão quase 10 anos atrás: quando a dor ficava grande demais, era como se ela erguesse uma muralha gigante ao meu redor. Lá dentro, só existia eu. Só o que eu sentia. O mundo inteiro do lado de fora desaparecia.
Na época, escrevi sobre isso:
Acúmulo
Tá tudo errado e eu não consigo ver as coisas. Até depois de foder tudo, e aà eu tenho um vislumbre temporário de algumas coisas... quando tenho sorte. Eu sinto as coisas muito forte. Eu perco o controle das coisas que eu sinto, das coisas que eu deveria sentir. Eu sei que dói. Eu sei que tá errado. Eu sei que eu preciso entender. Eu sei que tá tudo errado. Às vezes, eu não consigo viver as coisas pequenas.
Às vezes, eu me sinto um tanque de guerra blindado, descontrolado. Que passa por cima de tudo sem sentir ninguém. Só que depois ele explode e eu sinto tudo que não é só meu. Eu sinto todos que passei por cima. Mas agora eu já esmaguei tudo. E é culpa minha. Que ficou presa dentro das próprias costelas, sentindo tudo que acontecia lá dentro, sem conseguir ouvir o que acontecia lá fora.
Eu fico presa. Presa em mim. E isso me parece tão estúpido. Que eu fique presa num lugar onde tudo ruim fica milhões de vezes intensificado e tudo de fora se apaga. Eu não vejo nada, eu não sinto nada, não escuto nada. Tô blindada dentro com o rebuliço. Me tranquei pra ficar levando caldo até não conseguir mais respirar. E sou só eu. É tudo sobre mim. Eu e eu e eu e eu. Tudo é sobre mim e só eu importo. Por que todo o mundo tá lá fora e eu não consigo escutar.
Mas aà a ilusão se destrói. E eu caio sentada. Com tudo que grita fora de mim. Tudo que grita pra mim. Eu não tava sentindo. Não tava vendo. Não dei espaço pra pensar. Eu tava só levando caldo, presa nas minhas costelas. E eu não dei a ninguém a oportunidade de me puxar pra fora. Eu não ouvia. Eu tava tão imersa nos caldos que me afogavam. E aà minhas costelas se quebram e a água escorre e eu respiro e eu vejo e eu escuto e eu sinto.
Quero parar de me afogar no rebuliço das minhas costelas.
Quero quebrar meu esterno e vomitar a água toda.


Até pra perceber que isso acontecia, na época, levou um tempo e muita terapia. Não é fácil reconhecer nossos padrões destrutivos quando a gente vive mergulhada neles. Dá muito trabalho olhar pra gente de verdade, e dá mais trabalho ainda olhar pra partes das quais temos vergonha.
Se manter na terapia é realmente para os fortes.
E hoje, nesse momento pequeno e ao mesmo tempo imenso, eu vejo o resultado de muito trabalho em busca de autoconhecimento. Nessa briga, mesmo ainda atravessada por tudo, eu consegui reconhecer um cuidado – torto, insuficiente, mas sincero.
E ver isso não apagou o que eu senti, mas trouxe um tipo diferente de alÃvio: nem é o alÃvio de quem já resolveu, mas de quem percebe que está aprendendo a resolver melhor. Que está aprendendo a ver além da própria muralha.
É bonito ver crescer o fruto de tanto trabalho.
Talvez amadurecer seja isso: sentir tudo que a gente precisa sentir, mas sem se afogar. Sem deixar que a dor nos feche para o mundo. Sem esquecer que, do outro lado, também tem alguém.
Nem sempre conseguimos ver além da tempestade. Mas, aos poucos, o olhar se alarga. Aos poucos, a dor vira ponte, não prisão. Aos poucos, a gente aprende que sentir não é o mesmo que se perder.
E quando isso acontece, mesmo que só por um instante, mesmo que na muralha abra apenas uma fresta – já é espaço suficiente para o ar entrar. E, enfim, a gente respira.
E eu respiro.
E sigo.
Porque sejam baby steps ou passos de gente grande, o importante é continuar caminhando.
A Metamorfose: A transformação, mudança
(Experimentar)
Toda história tem, no mÃnimo, dois lados. Mas, quando estamos magoados, só conseguimos enxergar o nosso. A narrativa se fecha e o outro vira um personagem bidimensional – o vilão, o insensÃvel, o que não tentou o suficiente.
Mas... e se tentássemos criar a versão dele da história?
O desafio desta semana é escolher um desentendido, uma situação mal resolvida, um momento em que você se sentiu machucadx por alguém – e criar a versão dessa pessoa. Não a versão real (porque essa só ela poderia contar), mas a versão que poderia ter sido.
O que ela estava sentindo naquele momento?
Que intenção pode ter existido por trás do que foi feito?
Que falhas e limitações humanas explicariam o que aconteceu?
O que pode ter sido difÃcil para ela, mesmo que para você fosse fácil?
Não precisa ser uma versão que justifica tudo ou que tira a sua dor da equação. Mas sim uma tentativa de imaginar como as coisas podem ter parecido do outro lado.
Toda história tem, no mÃnimo, dois lados. E, à s vezes, imaginar o outro já é um primeiro passo para enxergá-lo de verdade.
A Borboleta: Voo, produção, realização
(Abrir as asas e voar)
Quando estamos imersos no que sentimos, parece que só existe aquele jeito de sentir. Parece que a dor é só dor. A raiva é só raiva. A frustração é só frustração. Mas e se a gente experimentasse renomear essas emoções? E se tentássemos ser mais precisos:
estou com raiva → estou me sentindo injustiçadx;
estou frustradx → minhas expectativas não foram atendidas;
estou triste → queria me sentir mais cuidadx.
Nomear o que sentimos não faz a tempestade passar mais rápido, necessariamente, mas nos dá um mapa. Se sabemos exatamente onde está a dor, fica mais fácil encontrar a saÃda.
Essa semana, presta atenção nas emoções mais intensas que surgirem, que talvez pareçam grandes demais, e vai anotando cada uma da maneira mais especÃfica e com menos palavras que conseguir.
Depois escolhe uma dessas emoções e cria uma "saÃda" para ela. Pode ser um desenho, um poema, uma cena de filme imaginária, um gesto simbólico, uma música. Pode ser realista ou abstrato, literal ou metafórico.
Como seria o alÃvio dessa sensação? Como seria um caminho para além dela?
Se o que você sente fosse uma tempestade, que forma teria o seu abrigo?
Espero que essa edição seja uma fresta, por menor que seja, para um jeito de ver além.
Bjs e até quarta que vem <3