crisálida - escola de narrativas visuais
Crisálida: Escola de Narrativas Visuais
Episódio 1 - Por que não houve grandes artistas mulheres?
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Episódio 1 - Por que não houve grandes artistas mulheres?

“as mulheres precisam estar nuas pra entrar no museu?”

Se os museus estão cheios de "gênios" da arte, por que quase todos eles são homens? Será que as mulheres simplesmente não foram boas o suficiente? Ou será que o buraco é bem mais embaixo?

Neste primeiro episódio, vamos mergulhar na dissertação de Linda Nochlin de 1971 e desmontar o mito do grande artista e entender como a genialidade sempre foi uma questão de acesso, não só de talento. Bora questionar a história da arte?


Oi! Eu to muito feliz de te receber aqui - no primeiríssimo episódio do podcast da Crisálida – um espaço pra gente falar de criatividade, imagem e narrativa como formas de se conhecer e se expressar.


Aqui quem fala é MC, mestra em Art Business. Já fui fotógrafa nos Estados Unidos, editora de vídeos no Japão, professora Universitária na Inglaterra e, depois de rodar o mundo, agora me dedico a você, crisálider. Quero te ajudar a contar histórias que fazem sentido, que traduzem sentimentos e criam conexões reais.

Esse é o podcast da Crisálida onde a arte e a introspecção são berço de toda transformação.

Vamos falar de técnica e estética? Vamos. Mas também de repertório, diversidade, experimentação, filosofia. Da fotografia ao cinema, da arte clássica à inteligência artificial, a ideia é expandir o olhar e entender como a imagem constrói narrativas.

Ao longo dos episódios, Vamos questionar verdades absolutas, explorar temas polêmicos, e ouvir também de convidados para enriquecer o debate – artistas, pesquisadores, profissionais de outras áreas ou qualquer um que tenha algo relevante para somar à conversa. Vou também te trazer reflexões mais introspectivas, como nas Quartas Criativas - a nossa newsletter que está disponível também no Substack em forma de texto/imagem/links para aprofundar o tema. Tu pode encontrar lá como @crisalida.

Para mais conteúdos sobre narrativa visual, arte e criatividade, me encontra também no Instagram e no YouTube como @crisalidaescola.

Agora, bora começar?


Se tu gosta um pinginho de arte, já deve ter visto aquele pôster amarelo com uma mulher nua e cabeça de gorila perguntando: “as mulheres precisam estar nuas pra entrar no museu?”

poster das Guerrilla Girls para o MASP

Bora fazer um experimento. Pergunta pra primeira alma que cruzar teu caminho cinco nomes de artistas que revolucionaram a arte. Fácil! Picasso, Da Vinci, Van Gogh, Michelangelo, Monet... a lista vai. E vai ter infinitas razões.

Agora pede cinco mulheres. Frida talvez venha rápido. Talvez até Georgia O’Keeffe. Se a pessoa manjar um pouco mais, quem sabe Kusama, Artemisia Gentileschi, Marina Abramović... Mas fechar cinco nomes com justificativa? A maioria esmagadora vai travar.

Yayoi Kusama no seu quarto infinito

Será, deusa, que as mulheres simplesmente não foram boas o suficientes? Será que todas elas só foram apagadas, escondidas da história? Olha…spoiler alert, o buraco é mais embaixo.

Bora lá, bora entrar nesse museu…

Imagina que você está em um grande museu. Internacional. Um daqueles que definem o cânone da história da arte. Você caminha pelas galerias, observa as grandes telas, os monumentos da genialidade humana. Mas algo falta. Ou melhor… alguém. Cadê as artistas mulheres???

Essa é uma pergunta que pode parecer simples, mas em 1971, a historiadora de arte Linda Nochlin a transformou em uma investigação radical (aqui a sua dissertação original).

E não se engane – a questão não é se existiram mulheres que pintaram, esculpiram ou criaram arte. Claro que existiram. Mas por que nenhuma delas entrou para o panteão dos "grandes gênios" da arte ao lado de Rafael, Rembrandt, Mondrian?

Se a resposta imediata que vem é "Ah, elas existiram, mas foram apagadas da história escrita por homens", isso é verdade... mas só até certo ponto. Porque, se realmente houvesse um exército de artistas mulheres revolucionárias enterradas pela historiografia, seria muito improvável que até hoje elas não tivessem sido redescobertas. E olhe que algumas foram, viu? Gentileschi é uma delas, inclusive. E essa redescoberta só começou a acontecer quando mulheres começaram a ser historiadoras de arte e notaram esse buraco e se incomodaram com esse buraco e quiseram mudar a situação.

Judith decapitando Holofernes (1620) por Artemisia Gentileschi

Então, o que aconteceu?

A resposta (como você já previu) não está no talento individual – está nas estruturas que moldam quem pode ou não pode se tornar um "gênio".

Existe um conto de fadas na história da arte que chamamos de "o mito do grande artista".

A narrativa que nos contam é sempre assim:

"Ai menina, desde criança ele mostrava esse talento. Beethoven, com quatro anos, pegou o piano, tocou a ópera inteira. Um gênio! Brilhante! O menino foi tocar no lápis, quando viu, estava lá a Monalisa!” E assim vai…

Mas Linda Nochlin, brilhantemente, desmonta essa ideia. O grande artista não nasce isolado em um vácuo, brilhando como uma estrela solitária. Ele é o produto de um contexto.

E esse contexto – as instituições, os sistemas de aprendizado, os circuitos de reconhecimento e os apoios estruturais – sempre estiveram fechados para as mulheres.

Vamos olhar para os principais obstáculos.

  1. Acesso ao Estudo: O Corpo Proibido

Para se tornar um grande pintor ou escultor no Ocidente, uma coisa era essencial: o estudo do nu.

Desde o Renascimento, o domínio da anatomia humana era considerado um dos principais critérios para a excelência artística. Michelangelo, da Vinci, Rafael – todos passaram horas dissecando cadáveres e desenhando modelos nus em academias de arte.

estudo anatômico por Leonardo Da Vinci

Mas mulheres tinham acesso a isso? Não. Era Proibido. Até o final do século XIX, era proibido para mulheres frequentarem essas aulas. Isso significa que as artistas mulheres eram empurradas para gêneros considerados “menores”: natureza morta e paisagens – enquanto os grandes nomes da arte eram laureados por sua maestria em figuras humanas e composições monumentais.

Como competir em um jogo cujas regras foram escritas para que você não possa jogar?

  1. Falta de Incentivos e Reconhecimento

Imagine que você é uma jovem mulher talentosa na França do século XIX. Você quer ser artista. Mas, para entrar no circuito oficial, você precisa vencer um concurso para estudar na Academia de Belas Artes. O problema? Mulheres não podiam competir.

Até o final do século XIX, não havia como elas entrarem no principal sistema que formava e consagrava artistas. E mesmo quando começaram a ser aceitas, as grandes premiações – as medalhas do Salon, a prestigiada Legião de Honra – continuaram sendo concedidas a homens.

Em outras palavras: até quando mulheres eram permitidas, o jogo já estava perdido.

em “Os acadêmicos da The Royal Academy” (1772) de Johann Zoffany, as duas únicas mulheres que faziam parte da Royal Academy em Londres na época foram retratadas apenas como bustos (direita superior), enquanto os 36 homens apareciam ativamente na cena.
  1. Expectativas Sociais e Tempo Para Criar

Ser um "gênio" na arte significa dedicação absoluta. E que mulher podia se dar esse luxo?

Enquanto os homens eram incentivados a perseguir carreiras, as mulheres eram empurradas para dentro de casa. A expectativa era muito clara: o papel da mulher era servir à família, não à arte ou qualquer outra coisa. Qualquer mulher que tentasse escapar dessa norma era vista como egoísta ou imprópria ou louca.

Pra tu teres noção, nos guias domésticos do século XIX, encontramos frases como esta:

”Ser capaz de fazer muitas coisas razoavelmente bem é infinitamente mais valioso para uma mulher do que ser capaz de se destacar em qualquer uma.”

Essa vem do guia doméstico da Sra. Ellis.

Em outras palavras: melhor ser uma boa esposa do que uma grande artista ou uma grande qualquer coisa de reconhecimento fora de casa.

Inclusive, a ideia da mulher artista estabelecida no século XIX era bordado ou cerâmica, ou qualquer coisa que a mulher estaria indiretamente ou diretamente servindo a família.

E aqui entra um ponto crucial: enquanto as mulheres estavam ocupadas mantendo a vida doméstica funcionando, os homens podiam se dedicar 100% à carreira, apoiados por esposas, e empregadas. O resultado? Gênios homens. Mulheres invisíveis.

  1. Acesso à Vida Pública e Contatos Profissionais

Além de tudo isso, um artista precisava estar no lugar certo, na hora certa, conhecendo as pessoas certas. Não se engane, sempre foi sobre networking. Claro, não pode ser network sem talento. O talento tem que estar. Mas quanto talento não deixou de florescer, porque simplesmente a pessoa não conhecia as pessoas certas?

Os grandes nomes da arte sempre foram parte de círculos sociais que definiam tendências e distribuíam oportunidades. Eles frequentavam cafés, salões, debates políticos, viajavam para expandir horizontes, eles conheciam os patronos. Era tudo Clube do Cebolinha, menino: Mulheres não permitidas.

As mulheres? Socialmente, elas não tinham esse direito. Uma mulher viajando sozinha? Escândalo. Uma mulher conversando com patronos e críticos de arte? Inapropriado.

Isso criava uma barreira invisível, mas intransponível. Como competir quando você sequer tem o direito de estar presente?

Imagina aquela festa da tua firma que tá todo mundo se amostrando pro chefe, falando das coisas que fez e tu não pode nem chegar na festa? Como é que tu vai ganhar teu bônus? Como é que tu vai ganhar tua promoção?

A grande questão que Linda Nochlin escancara na sua dissertação é que a genialidade não é uma questão apenas de talento, mas de acesso.

As regras do jogo foram feitas para impedir que as mulheres competissem. Elas foram privadas:

  • Do estudo essencial para se tornarem artistas;

  • Dos prêmios e reconhecimentos que impulsionavam carreiras;

  • Do tempo e do incentivo necessário para se dedicarem à arte;

  • Do acesso ao meio artístico e aos contatos certos.

Inclusive, a maior prova do impacto da falta de acesso nas artes visuais é o fato de que a literatura conseguiu produzir grandes nomes femininos – como Emily Dickinson, Jane Austen e Virginia Woolf.

Jane Austen, uma gravura do século XIX provavelmente derivada de um retrato de sua irmã, Cassandra Austen, c. 1810

Nas artes visuais, o caminho era bloqueado em todos os níveis: era preciso aprendizado técnico, um vocabulário específico e treinamento fora de casa, em academias ou com mestres – espaços onde mulheres simplesmente não eram permitidas.

Já para ser poeta ou romancista, bastava conhecer a língua, saber lê-la e escrevê-la – e, ainda que de forma limitada, esse conhecimento era acessível às mulheres. Além disso, a escrita podia ser feita dentro de casa, sem o escândalo social de uma mulher sair para estudar em um ateliê, observar modelos nus ou negociar com patronos.

Mesmo sem incentivo e esmagadas por expectativas sociais, algumas mulheres conseguiram se destacar na literatura. Mas na pintura e na escultura, onde o acesso era barrado desde a base, era simplesmente impossível competir.

Artemisia Gentileschi mesmo só fez o que ela fez porque o pai dela era pintor e ela cresceu dentro do ateliê, aprendendo com ele. Mas se você não tivesse esse tipo de acesso, você não podia. E, muito provavelmente, se ela não tivesse, ela própria não teria feito o que ela fez. E aí você vê que mesmo com estudo, mesmo com a formação “adequada”, ela só foi desenterrada agora no século XXI. Ela passou esse tempo todo desconhecida. Ninguém sabia quem era Artemisia Gentileschi até um dia desse porque não tinha incentivo, porque ninguém ia reconhecer, porque todos os homens historiadores não iam bota ela no livro como os grandes, porque ela era só uma mulher.

E depois de tudo isso, o sistema ainda tem a audácia de dizer que elas não foram "grandes o suficiente".

Então, depois de tudo isso, a pergunta muda, não é? Não é mais "porque não houve grandes artistas mulheres?” Agora a gente pode perguntar “o que significa ser considerado um grande artista? E quem define essas regras?”

Se o mundo da arte foi construído sobre exclusões, está na hora de reconstruir. E mais, se a genialidade sempre foi uma questão de acesso, quem são os grandes nomes que a gente está ignorando agora?

O que acontece quando olhamos além do que nos ensinaram a ver?


E, assim, a gente encerra. Esse é o podcast da Crisálida - escola de narrativas visuais. Nosso objetivo é ajudar você a descobrir sua própria voz, respeitar sua individualidade e desenvolver suas habilidades criativas. Quem fala contigo é MC, mestra em Art Business. Já fui fotógrafa nos Estados Unidos, editora de vídeos no Japão, professora Universitária na Inglaterra e, depois de rodar o mundo, agora me dedico a você, crisálider. Bora junto explorar como contar histórias pode gerar significado, expressar sentimentos, fortalecer nossa autoestima e construir conexões profundas com o mundo ao nosso redor. Esse é o podcast da Crisálida onde a arte e a introspecção são berço de toda transformação.

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